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  • Orfeu Negro, 1959

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    Orfeu Negro foi o único filme de língua portuguesa a ganhar um Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Digo de língua portuguesa, e não brasileiro, porque oficialmente foi considerado como sendo um filme francês, por causa do seu realizador, Marcel Camus, e de uma das suas produtoras. Assim o foi com a Palma de Ouro e com o Globo de Ouro; já o Bafta decidiu atribuir também o mérito a quem de direito.

    Pouco importa: é cinema brasileiro, e de uma era em que esse cinema dava cartas sem necessitar de disparar um único tiro ou proferir algum palavrão. Uma era em que a favela era só morro, e o Rio merecia plenamente o epíteto de Cidade Maravilhosa.

    É um filme que poderia ser visto de olhos fechados, tamanha a qualidade da banda-sonora do mestre Antônio Carlos Jobim e Luiz Bonfá (prelúdio da bossa nova que estava nascendo), e a intensidade do samba que rola praticamente constantemente ao longo das quase duas horas de filme. Mas o melhor mesmo é mantê-los bem abertos, e desfrutar da explosão de cor (ou eastmancolor) com que o Rio antigo e os seus habitantes são retratados.

    Penso até que o tal do Camus ficou demasiado vidrado pelo Rio e pelo samba e esqueceu que estava fazendo um filme, com tanta sequência de longos minutos em que só se vêem pernas frenéticas balançando e corpos suando de um lado para o outro. Compreensível e perdoável, provavelmente aconteceria a qualquer um.

    A história é uma adaptação (bastante) livre da tragédia grega de Orfeu e Eurídice, adaptada à realidade carioca. Tragédias gregas são temas recorrentes na música e dramaturgia brasileira (vide a Gota D’Água do Chico), sendo o próprio filme inspirado numa peça de Vinicius, Orfeu da Conceição. Não sei quem foi o primeiro a encontrar a ligação entre as tragédias gregas e o Carnaval carioca, mas a fórmula provou ser brilhante.

    Todo ele é exuberância, ingenuidade, e completa demonstração do que é a insanidade daquele Carnaval. É sem dúvida um retrato demasiado romantizado e lírico, mas que não deixa de exercer enorme fascínio.

    Não percebo como a carreira da belíssima Marpessa Dawn (que não era brasileira) não deslanchou em seguida: ela nem precisava falar para encher a cena, tamanha a simplicidade e beleza dos seus gestos.

    Parafraseando e repetindo, o simples já é de si complexo. E faz cada vez mais falta.

  • Tom e Vinicius

    Tom & Vinicius - O Musical

    Ainda que possua algum do melhor material alguma vez escrito e composto na música brasileira e mundial, tenho imensas duvidas que isto faça jus a estes dois Mestres. De qualquer forma, vou tentar ir lá tirar a teima.

  • Dia Mundial da Poesia

    Diz que hoje é Dia Mundial da Poesia. Qualquer dia é um bom dia para eu recordar o poema que eu mais amo, do grande Vinicius.

    O operário em construção

    E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
    – Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
    E Jesus, respondendo, disse-lhe:
    – Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
    Lucas, cap. V, vs. 5-8.

    Era ele que erguia casas
    Onde antes só havia chão.
    Como um pássaro sem asas
    Ele subia com as casas
    Que lhe brotavam da mão.
    Mas tudo desconhecia
    De sua grande missão:
    Não sabia, por exemplo
    Que a casa de um homem é um templo
    Um templo sem religião
    Como tampouco sabia
    Que a casa que ele fazia
    Sendo a sua liberdade
    Era a sua escravidão.

    De fato, como podia
    Um operário em construção
    Compreender por que um tijolo
    Valia mais do que um pão?
    Tijolos ele empilhava
    Com pá, cimento e esquadria
    Quanto ao pão, ele o comia…
    Mas fosse comer tijolo!
    E assim o operário ia
    Com suor e com cimento
    Erguendo uma casa aqui
    Adiante um apartamento
    Além uma igreja, à frente
    Um quartel e uma prisão:
    Prisão de que sofreria
    Não fosse, eventualmente
    Um operário em construção.

    Mas ele desconhecia
    Esse fato extraordinário:
    Que o operário faz a coisa
    E a coisa faz o operário.
    De forma que, certo dia
    À mesa, ao cortar o pão
    O operário foi tomado
    De uma súbita emoção
    Ao constatar assombrado
    Que tudo naquela mesa
    – Garrafa, prato, facão –
    Era ele quem os fazia
    Ele, um humilde operário,
    Um operário em construção.
    Olhou em torno: gamela
    Banco, enxerga, caldeirão
    Vidro, parede, janela
    Casa, cidade, nação!
    Tudo, tudo o que existia
    Era ele quem o fazia
    Ele, um humilde operário
    Um operário que sabia
    Exercer a profissão.

    Ah, homens de pensamento
    Não sabereis nunca o quanto
    Aquele humilde operário
    Soube naquele momento!
    Naquela casa vazia
    Que ele mesmo levantara
    Um mundo novo nascia
    De que sequer suspeitava.
    O operário emocionado
    Olhou sua própria mão
    Sua rude mão de operário
    De operário em construção
    E olhando bem para ela
    Teve um segundo a impressão
    De que não havia no mundo
    Coisa que fosse mais bela.

    Foi dentro da compreensão
    Desse instante solitário
    Que, tal sua construção
    Cresceu também o operário.
    Cresceu em alto e profundo
    Em largo e no coração
    E como tudo que cresce
    Ele não cresceu em vão
    Pois além do que sabia
    – Exercer a profissão –
    O operário adquiriu
    Uma nova dimensão:
    A dimensão da poesia.

    E um fato novo se viu
    Que a todos admirava:
    O que o operário dizia
    Outro operário escutava.

    E foi assim que o operário
    Do edifício em construção
    Que sempre dizia sim
    Começou a dizer não.
    E aprendeu a notar coisas
    A que não dava atenção:

    Notou que sua marmita
    Era o prato do patrão
    Que sua cerveja preta
    Era o uísque do patrão
    Que seu macacão de zuarte
    Era o terno do patrão
    Que o casebre onde morava
    Era a mansão do patrão
    Que seus dois pés andarilhos
    Eram as rodas do patrão
    Que a dureza do seu dia
    Era a noite do patrão
    Que sua imensa fadiga
    Era amiga do patrão.

    E o operário disse: Não!
    E o operário fez-se forte
    Na sua resolução.

    Como era de se esperar
    As bocas da delação
    Começaram a dizer coisas
    Aos ouvidos do patrão.
    Mas o patrão não queria
    Nenhuma preocupação
    – “Convençam-no” do contrário –
    Disse ele sobre o operário
    E ao dizer isso sorria.

    Dia seguinte, o operário
    Ao sair da construção
    Viu-se súbito cercado
    Dos homens da delação
    E sofreu, por destinado
    Sua primeira agressão.
    Teve seu rosto cuspido
    Teve seu braço quebrado
    Mas quando foi perguntado
    O operário disse: Não!

    Em vão sofrera o operário
    Sua primeira agressão
    Muitas outras se seguiram
    Muitas outras seguirão.
    Porém, por imprescindível
    Ao edifício em construção
    Seu trabalho prosseguia
    E todo o seu sofrimento
    Misturava-se ao cimento
    Da construção que crescia.

    Sentindo que a violência
    Não dobraria o operário
    Um dia tentou o patrão
    Dobrá-lo de modo vário.
    De sorte que o foi levando
    Ao alto da construção
    E num momento de tempo
    Mostrou-lhe toda a região
    E apontando-a ao operário
    Fez-lhe esta declaração:
    – Dar-te-ei todo esse poder
    E a sua satisfação
    Porque a mim me foi entregue
    E dou-o a quem bem quiser.
    Dou-te tempo de lazer
    Dou-te tempo de mulher.
    Portanto, tudo o que vês
    Será teu se me adorares
    E, ainda mais, se abandonares
    O que te faz dizer não.

    Disse, e fitou o operário
    Que olhava e que refletia
    Mas o que via o operário
    O patrão nunca veria.
    O operário via as casas
    E dentro das estruturas
    Via coisas, objetos
    Produtos, manufaturas.
    Via tudo o que fazia
    O lucro do seu patrão
    E em cada coisa que via
    Misteriosamente havia
    A marca de sua mão.
    E o operário disse: Não!

    – Loucura! – gritou o patrão
    Não vês o que te dou eu?
    – Mentira! – disse o operário
    Não podes dar-me o que é meu.

    E um grande silêncio fez-se
    Dentro do seu coração
    Um silêncio de martírios
    Um silêncio de prisão.
    Um silêncio povoado
    De pedidos de perdão
    Um silêncio apavorado
    Com o medo em solidão.

    Um silêncio de torturas
    E gritos de maldição
    Um silêncio de fraturas
    A se arrastarem no chão.
    E o operário ouviu a voz
    De todos os seus irmãos
    Os seus irmãos que morreram
    Por outros que viverão.
    Uma esperança sincera
    Cresceu no seu coração
    E dentro da tarde mansa
    Agigantou-se a razão
    De um homem pobre e esquecido
    Razão porém que fizera
    Em operário construído
    O operário em construção.