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Jesusalém

 

“Jesusalém é seguramente a mais madura e mais conseguida obra de um escritor no auge das suas capacidades criativas”, é o que diz na contracapa do último romance de Mia Couto, Jesusalém (Antes de Nascer o Mundo, no Brasil).  Não consigo reiterar a primeira parte da frase porque não li todas as suas obras e nem consigo me decidir entre este e Terra Sonâmbula, mas que está indiscutivelmente no auge das suas capacidades, está.

Silvestre Vitalício é um velho amargurado que, dada uma tragédia familiar, decide alhear-se do mundo levando consigo os seus dois filhos (Mwanito e Ntunzi), uma jumenta e um serviçal, fundando num povoado distante da sociedade uma nova terra, Jesusalém, onde dizia que Jesus haveria de regressar e se “descrucificar”.

O corte estabelecido entre Jesusalém e o “velho mundo” é de tal modo profundo que Silvestre alterou o seu nome e dos seus filhos, e indicou-lhes que o mundo terminara e eram eles os últimos sobreviventes. Impedia o mais novo de aprender a ler e escrever, e esconjurava tudo o que fossem resquícios de lembranças da sua antiga vida. O único que possuía autorização para cruzar as fronteiras de Jesusalém era o seu cunhado Aproximado, que de tempos a tempos abastecia-lhes de mantimentos.

Todo este mundo de ilusões é abalado pela presença de uma mulher portuguesa, que vem despertar ainda mais a curiosidade e a revolta das duas criançar, e reavivar os fantasmas que Silvestre pretendia enterrar.

O grande forte do livro é o tom poético (diria quase mágico) como Mwanito e o irmão vão amadurecendo e se questionando sobre o não-mundo onde enterram as suas infâncias, inventando emoções e lembranças e descascando aos poucos a complexa realidade que seu pai fabricou para se esconder. Outro ponto interessante é o modo como, não existindo mulheres em Jesusalém, a presença feminina não cessa de ser evocada e quase divina, materializada posteriormente pela portuguesa.

De brinde, o livro está povoado de excertos de belíssimos poemas no início de cada capítulo, (vários) de Sophia de Mello Breyner Andresen, Hilda Hilst, Adélia Prado e outras mais.

Fica pra ler.

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Estorvo

Continuando o meu roteiro literário inverso do Chico Buarque, li esta semana aquele que foi o seu primeiro romance, Estorvo.

Me prendeu mais que Benjamim e me entusiasmou menos que Leite Derramado. O protagonista, que não tem nome, nem bem vive nem morre, vagueia. Vagueia perdido, obsessivo não se sabe bem com o quê e contemplando a hipocrisia e a decadência da sociedade em que vive, da irmã e da mãe que o sustentam, da ex-mulher, dos ex-amigos, do ex-apartamento, enfim, tudo em sua história falhou ou foi perdido. Esse homem é o estorvo do mundo em que vive.

Resumido assim parece uma história deprimente de um vagabundo fracassado qualquer, mas o tom que é empregue à escrita além de pesado, é contraditório, conseguindo ser ao mesmo tempo desesperado e apático, além de dar a algumas das estórias que o compõem contornos de romance policial. Uma história estranha e atribulada, contada duma maneira completamente desprendida.

Sendo o segundo melhor que o primeiro e pior que o último (pelo meio ainda há Budapeste, que já li mas ainda não blogava), não é uma evolução linear, e nem o deveria ser; são uns altos e baixos de um escritor, não de um músico que decidiu se aventurar pela escrita: Chico Buarque é um escritor que, para mim, já conquistou o pleno direito de figurar entre os melhores da literatura brasileira.

Aguardo com expectativa a próxima obra.

Continuando o meu roteiro literário inverso do Chico Buarque, li esta semana aquele que foi o seu primeiro romance, Estorvo.

Me prendeu mais que Benjamim e me entusiasmou menos que Leite Derramado. O protagonista, que não tem nome, nem bem vive nem morre, vagueia. Vagueia perdido, obsessivo não se sabe bem com o quê e contemplando a hipocrisia e a decadência da sociedade em que vive, da irmã e da mãe que o sustentam, da ex-mulher, dos ex-amigos, do ex-apartamento, enfim, tudo em sua história falhou ou foi perdido. Esse homem é o estorvo do mundo em que vive.

Resumido assim parece uma história deprimente de um vagabundo fracassado qualquer, mas o tom que é empregue à escrita além de pesado, é contraditório, conseguindo ser ao mesmo tempo desesperado e apático, além de dar a algumas das estórias que o compõem contornos de romance policial. Uma história estranha e atribulada, contada duma maneira completamente desprendida.

Sendo o segundo melhor que o primeiro e pior que o último (pelo meio ainda há Budapeste, que já li mas ainda não blogava), não é uma evolução linear, e nem o deveria ser; são uns altos e baixos de um escritor, não de um músico que decidiu se aventurar pela escrita: Chico Buarque é um escritor que, para mim, já conquistou o pleno direito de figurar entre os melhores da literatura brasileira.

Aguardo com expectativa a próxima obra.

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Benjamim

Este, que foi o segundo livro escrito por Chico Buarque, não me entusiasmou particularmente. Estou fazendo o roteiro das produções literárias do Chico Buarque ao contrário, e dá para notar que enquanto escritor ele foi efectivamente evoluindo ao longo do tempo (como em Leite Derramado, de que já falei aqui).

Benjamim Zambraia é um ex-modelo fotográfico que vive obcecado com o passado e com a enigmática morte da mulher da sua vida, que entretanto se materializa numa jovem que conhece ao acaso, e que em tudo lhe lembra a outra. A história é narrada tanto sob a perspectiva de Benjamim quanto de uma câmera invisível que o personagem utiliza desde a adolescência, e da qual já não consegue distinguir o que é seu e o que é gravado, o que é passado e o que é presente.

Não chego a me fascinar com a história nem me compadecer da angústia de nenhum dos personagens principais do livro. É no entanto, bastante original e muito bem escrito, e consegue nos agarrar à leitura por aí,  ficando na retina parágrafos como este:

A contragosto, Ali saiu da padaria e foi conduzido pelo primo até uma rua escura, transversal. “Olha as putas”, disse o primo, olhando aquelas mulheres que fumavam, cada qual dona de um poste. Gargalhou até ver sua mãe, apoiada no terceiro poste da calçada esquerda, de piteira. Ainda tentou recusá-la, porque aquele vestido de lantejoulas não era dela, nem ele nunca vira sua mãe fumando, mas o primo olhava para ele e para a mãe ao mesmo tempo, e ria de um modo tão forçado, que a Ali só restou cerrar os punhos e partir para cima dele e chutá-lo e xingá-lo de veado. O primo não sentiu a violência das porradas, muito menos do insulto;  entortou uma perna sobre a outra, espetou o queixo com o indicador, depois armou um biquinho que condensou o seu buço, fazendo com que ele parecesse uma mocinha de bigodes negros. O primo gostou do insulto porque era veado mesmo, conforme Ali ficou sabendo tempos depois. Ali tinha então cinco anos e não sabia muito bem o que significava ser veado. Tampouco sabia o que fazia de errado uma puta, fora fumar no poste. Mas já tinha a certeza de que, no mundo inteiro, pior que veado, maconheiro, dedo-duro e tudo o mais, a pior situação na vida é ser um filho-da-puta.

Fica a curiosidade para assistir ao filme homónimo, que proporcionou a estreia da Cléo Pires como actriz, e logo num enredo pesadíssimo destes, com violação pelo meio e tudo o mais. Até é de esperar que, dada a narrativa, a coisa funcione melhor em ecrã. Fica pra pensar.

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The Rum Diary

Gosto muito quando tenho a oportunidade de ler um livro antes da sua adaptação cinematográfica, e neste caso isso aconteceu por pouco.

Tinha-o na prateleira há algum tempo, e acelerei a sua leitura assim que notei que The Rum Diary vai estrear no ano que vem, com Johny Depp mais uma vez à cabeça de um filme originário de um livro de Hunter S. Thompson, depois do alucinante Fear and Loathing in Las Vegas.

A história é relativamente simples e, como de costume, em parte baseada na experiência do próprio autor: Paul Kemp, um jornalista freelancer trintão que já percorreu meio-mundo sem conseguir encontrar o seu caminho, aterra em Porto Rico e consegue emprego num jornal de língua inglesa de meia-tigela, constantemente à beira do abismo. Tudo o que se segue são descrições da decadência, imoralidade e loucura que povoam o estilo de vida da ilha (e a mente do autor). O livro tresanda a álcool de uma ponta à outra, sempre narrado num ritmo frenético, tanto cativante e sarcástico quanto perturbador.

Acho estranho que tenha havido tanta relutância da parte do autor em publicar este livro (escrito em 1959, viu a luz do dia em 1998), dada a quantidade de talento (e de loucura) expressa em todas as suas páginas. De notar que só tinha 22 anos quando o escreveu, mas captou com uma grande mestria todo o pessimismo das suas personagens.

Na minha imaginação, este livro dá um grande filme. É de estranhar a ausência de Yeamon no casting listado no IMDB, dado ser uma das suas personagens principais, mas vou esperar para ver. Não conheço o trabalho deste Bruce Robinson, esperemos que não decepcione com este material brilhante nas mãos (ficava mais descansado com o Terry Gilliam a dar continuidade ao Fear and Loathing, mas fica pra pensar).

Gosto muito quando tenho a oportunidade de ler um livro antes da sua adaptação cinematográfica, e neste caso isso aconteceu por pouco.

Tinha-o na prateleira há algum tempo, e acelerei a sua leitura assim que notei que The Rum Diary vai estrear no ano que vem, com Johny Depp mais uma vez à cabeça de um filme originário de um livro de Hunter S. Thompson, depois do alucinante Fear and Loathing in Las Vegas.

A história é relativamente simples e, como de costume, em parte baseada na experiência do próprio autor: Paul Kemp, um jornalista freelancer trintão que já percorreu meio-mundo sem conseguir encontrar o seu caminho, aterra em Porto Rico e consegue emprego num jornal de língua inglesa de meia-tigela, constantemente à beira do abismo. Tudo o que se segue são descrições da decadência, imoralidade e loucura que povoam o estilo de vida da ilha (e a mente do autor). O livro tresanda a álcool de uma ponta à outra, sempre narrado num ritmo frenético, tanto cativante e sarcástico quanto perturbador.

Acho estranho que tenha havido tanta relutância da parte do autor em publicar este livro (escrito em 1959, viu a luz do dia em 1998), dada a quantidade de talento (e de loucura) expressa em todas as suas páginas. De notar que só tinha 22 anos quando o escreveu, mas captou com uma grande mestria todo o pessimismo das suas personagens.

Na minha imaginação, este livro dá um grande filme. É de estranhar a ausência de Yeamon no casting listado no IMDB, dado ser uma das suas personagens principais, mas vou esperar para ver. Não conheço o trabalho deste Bruce Robinson, esperemos que não decepcione com este material brilhante nas mãos (ficava mais descansado com o Terry Gilliam a dar continuidade ao Fear and Loathing, mas fica pra pensar).

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Leituras, Tecnologias

Rework

Este livro é uma lufada de ar fresco.

Eu nem sequer tinha conhecimento do background dos autores quando comecei a tomar contacto com as abordagens que defendem no livro, mas eles possuem bastante experiência e moral para falar; a empresa que dirigem, fundada por um dos autores, a 37signals, é um enorme caso de sucesso no mundo da tecnologia web.

Além de particularmente bem escrito (lê-se de uma assentada), as polémicas afirmações que vão fazendo são sempre suportadas com excelentes exemplos reais de sucesso.

Identifiquei-me especialmente com os seguintes pontos:

Enough with “entrepeneurs”

Que tesão é essa com o empreendedorismo? Na minha faculdade há o dia do empreendedorismo, eu tive a cadeira (obrigatória de mestrado!) economia e empreendedorismo (de cujo nome o próprio professor zombava), há o Madan Parque com toda a sua conversa de empreendedorismo, gabinete do empreendedorismo, as empresas tem necessidade de mostrar todo o seu potencial empreendedor… bla, bla. Quando há tanta necessidade de afirmação, é mau sinal.

Meetings are toxic

Esta afirmação tocou-me particularmente. Ao longo do último ano, estive envolvido em diversas reuniões relacionadas com o projecto em que a minha tese está englobada. Reuniões com o resto do pessoal envolvido, reuniões em outra empresa que será uma potencial cliente do que estamos a desenvolver… manhãs, tardes, dias inteiros perdidos em que a produtividade é quase nula, divagam-se horas e horas sem já se saber muito bem o que se anda a discutir. Meetings are toxic, claramente.

Workaholism  / Go to sleep / No time is no excuse

Outro ponto ao qual sou particularmente sensível. Grande parte do pessoal que anda aqui na faculdade adora vangloriar-se das directas que faz a estudar para exames, a terminar trabalhos; afirmam peremptoriamente que o nosso curso é quase impossível de se fazer sem directas. Eu só fiz uma directa ao longo dos 6 anos em que cá ando, em virtude de um trabalho final de uma cadeira em que ficamos apertados até à última. Foi no dia do meu aniversário, e o resultado final foi pouco mais que sofrível.

Depois há a história do tempo. Pessoal do segundo ano para cima (que só estuda), não tem tempo para nada. Pessoal que passou a trabalhar, não tem tempo para nada. Acontece, mas é mais conversa do que outra coisa, não é fácil, mas com vontade é possível conciliar tudo.

Hire great writers

É defendido que para qualquer posto que seja, escrever bem é um factor que pode fazer a diferença. Mais uma vez, não posso deixar de concordar. Em todo o lado e cada vez mais, as pessoas não sabem escrever, de todo. Escrever minimamente bem denota clareza de ideias, de pensamento e de raciocínio. E eventualmente talento para divulgar e dinamizar aquilo que se desenvolve (e como dizem também algures, tudo é marketing).

ASAP is poison

Aqui a ideia principal é simples: o tão cedo quando possível está sempre implícito, é o que toda a gente quer. Quando estamos sempre a dizer ASAP e a estabelecer prioridade máxima paras coisas, banalizam-se os pedidos de uma forma tal que, sendo tudo de alta prioridade, nada é. Tau.

Recomendo vivamente esta leitura, que não é direccionada apenas a quem tem ou vai começar um negócio (que até nem é o meu caso, para já), e nem só para o pessoal da área informática. Qualquer trabalhador ou estudante tem a ganhar em beber um pouco (sempre com moderação e espírito de crítica) destas filosofias.

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Football Against the Enemy

Football Against the Enemy

A tagline na capa deste livro diz “If you like football read it. If you don’t like football read it“, e é bem verdade. Sempre fui um bocado desconfiado em relação à mistura entre estes dois mundos (o futebol e a literatura), mas este livro é muito, muito bom.

O autor, Simon Kuper, é um jornalista desportivo que percorreu 22 países no início da década de 90 tentando perceber de que modo o futebol influenciou os aspectos políticos e culturais de cada país (e vice-versa). Foi uma altura boa para fazê-lo, pois ainda estavam bem frescas as quezílias entre os países dos balcãs, a queda do muro de Berlim, o fim do apartheid, os resquícios da ditadura argentina, e etc.

Obviamente que o futebol é o protagonista e o livro tem mais valor para quem o ama, mas aprende-se tanto sobre a história mundial que o futebol acaba por ser um “extra”. Vou dar só uma pequena achega.

Ficamos a saber, por exemplo, a origens dos clubes da união soviética: O Dynamo era o clube do KGB, o CSKA do exército, o Torpedo da Zil, o Lokomotiv dos caminhos de ferro e o Spartak de quem pretendia permanecer neutro, pois não possuía nenhum apoiante oficial. Era o clube do povo. O seu fundador, Nikolai Starostin, foi jogador e campeão de hóquei no gelo e futebol, capitaneou e treinou o seu país nos dois desportos e era o ódio de estimação de Lavrentiy Beria, chefe da polícia secreta de Estaline e um dos presidentes do Dynamo.

Após anos de espera, Starostin foi finalmente preso, sob a acusação de planear o assassinato de Stalin. Foi ilibado das acusações de tentativa de assassinato, mas ainda assim condenado, com os 3 irmãos, a 10 anos de confinamento na Sibéria, onde tinha uma vida privilegiada e foi se safando por diversas vezes de ser executado por ser o treinador de futebol dos Gulags por onde passava.

Outra história interessante, mais tarde mas ainda a leste. Quando o Muro de Berlim foi erguido, o estádio do Hertha ficava a poucos metros do mesmo, e o pessoal do leste que era fã pendurava-se lá para ouvir os golos. Obviamente que os guardas começaram a carregar neles, até que o próprio Hertha mudou-se para o mais afastado estádio olímpico. Não os dissuadiu. Foi criado um clube de adeptos clandestino para obter informações e tentar acompanhar alguns jogos de equipas ocidentais mais a leste. Durante anos estes fãs foram perseguidos, torturados e encarcerados pela Stasi nestas desventuras.

Depois que o muro caiu, o primeiro jogo do Hertha em casa levou 60000 pessoas, mesmo estando na segunda divisão. O seguinte, apenas 16000. O motivo? Os adeptos que tão humilhados foram ao longo dos anos, depararam-se com os chefes da Stasi e do Partido Comunista que lhes perseguiram na bancada VIP do estádio, e sentiram-se defraudados.

Há muito mais para contar, das experiências científicas do fortíssimo Dinamo Kiev dos anos 70 e 80, em que a equipa era escolhida pelo professor Zelentsov e os seus rigorosos testes psicotécnicos, a origem do catenaccio italiano com Helenio Herrera, as ligações do Real Madrid ao regime Franquista, os rituais macabros e meandros obscuros do futebol africano, os milhões gastos pelos militares argentinos para organizar o mundial de 78 (e tentar desviar as atenções das atrocidades que cometiam), o fanatismo dos católicos e dos protestantes na defesa do Celtic e do Rangers e por aí vai.

Read it! Now!

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Leite Derramado

Sou suspeito para falar de uma obra do Chico Buarque: costumo dizer que se tivesse que me apaixonar por um homem, seria por ele. Ainda assim, tento fazer um esforço para manter a devida distância.

Leite Derramado é um romance leve, simples, e que se lê num piscar de olhos. O narrador e falso protagonista é Eulálio Montenegro d’Assumpção, um centenário e caquético velhote que vai desfiando as suas memórias no leito de morte.

Basicamente, é a história de uma aristocracia (ou de um país) que se vai desmoronando ao longo dos tempos, e dos cacos que foram sobrando pelo caminho.

O ambiente do livro é ensombrado pela tristeza, mas uma tristeza imaginativa e mirabolante, que constantemente nos diverte e delicia. Volta e meia encontramo-nos perdidos nos labirintos da memória de Eulálio, em meio a peripécias baralhadas e desconexas. Às tantas já não sabemos (nem o próprio) de que Eulálio ou Eulalinho da família se fala, a quem se está dirigindo a narração, se o tom é coloquial ou ordinário, e nem tampouco conseguimos discernir os sentimentos que se pretendem expressar (ciúmes ou vergonha, ódio ou desprezo, e por aí vai).

Com tamanha obra e génio musical, Chico há-de sofrer sempre o preconceito de ser visto como um músico que escreve. É natural e justificado: foi ele próprio que colocou a fasquia demasiado elevada, e essa fasquia ainda está longe de ser atingida. Ainda assim, a sua marca na literatura brasileira já está presente, inquestionavelmente (até já estava com as suas letras, mas isso são outros quinhentos).

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O Mago

Paulo Coelho dispensa apresentações; escritor mais lido do mundo, mais traduzido, 100 milhões de livros vendidos, milionário, e por aí vai.

Não sou grande fã da sua obra, mas esta biografia despertou a minha curiosidade, não sei bem porquê. Surpreendeu-me imenso; é uma história do ca*****, mesmo. Não contava que uma obra biográfica me absorvesse tanto, me levasse a devorar um denso calhamaço de 600 páginas em menos de 6 dias (noites). A sensação com que fico no fim é que levei uma surra com esse calhamaço!

Não vale a pena eu perder tempo a resumir a história com uma tagline destas:

A incrível história de Paulo Coelho, o menino que nasceu morto, seduziu o anjo da morte, sofreu em manicómios, mergulhou nas drogas, experimentou diversas formas de sexo, encontrou-se com o diabo, foi preso pela ditadura, ajudou a revolucionar o rock brasileiro, redescobriu a fé e transformou-se num dos escritores mais lidos do mundo.

O pior é que é tudo verdade! Por mais que se duvide do misticismo e esoterismo das histórias de Paulo Coelho, a informação que é aqui apresentada é dissecada, contextualizada e narrada por Fernando Morais, um dos jornalistas brasileiros mais respeitados, que consegue até a proeza de narrar os encontros espirituais do escritor de uma forma objectiva (!).

Paulo Coelho deu total acesso aos seus diários íntimos, e permitiu que o jornalista o acompanhasse durante 4 anos. No final, demorou bastante a dar o aval à publicação. Motivo: “o meu passado me dá medo”.

São revelados muitos, muitos podres, e chegamos a sentir repulsa do homem, da sua obsessão, da sua mesquinharia, e da sua insanidade, que tanta coisa escabrosa o levou a fazer. E é isso que impressiona: é esse peso todo que carrega que atrai esse fascínio que o mundo tem por ele.

* Agora que me lembro, essa curiosidade foi aguçada por saber um pouco mais da história de Raul Seixas, a quem o meu irmão deve o nome. É alguém que não diz muito aos portugueses em geral, mas talvez esta musiquinha (vídeo sofrível) diga qualquer coisa (Cidade de Deus, anyone?)

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