Este, que foi o segundo livro escrito por Chico Buarque, não me entusiasmou particularmente. Estou fazendo o roteiro das produções literárias do Chico Buarque ao contrário, e dá para notar que enquanto escritor ele foi efectivamente evoluindo ao longo do tempo (como em Leite Derramado, de que já falei aqui).
Benjamim Zambraia é um ex-modelo fotográfico que vive obcecado com o passado e com a enigmática morte da mulher da sua vida, que entretanto se materializa numa jovem que conhece ao acaso, e que em tudo lhe lembra a outra. A história é narrada tanto sob a perspectiva de Benjamim quanto de uma câmera invisível que o personagem utiliza desde a adolescência, e da qual já não consegue distinguir o que é seu e o que é gravado, o que é passado e o que é presente.
Não chego a me fascinar com a história nem me compadecer da angústia de nenhum dos personagens principais do livro. É no entanto, bastante original e muito bem escrito, e consegue nos agarrar à leitura por aí, ficando na retina parágrafos como este:
A contragosto, Ali saiu da padaria e foi conduzido pelo primo até uma rua escura, transversal. “Olha as putas”, disse o primo, olhando aquelas mulheres que fumavam, cada qual dona de um poste. Gargalhou até ver sua mãe, apoiada no terceiro poste da calçada esquerda, de piteira. Ainda tentou recusá-la, porque aquele vestido de lantejoulas não era dela, nem ele nunca vira sua mãe fumando, mas o primo olhava para ele e para a mãe ao mesmo tempo, e ria de um modo tão forçado, que a Ali só restou cerrar os punhos e partir para cima dele e chutá-lo e xingá-lo de veado. O primo não sentiu a violência das porradas, muito menos do insulto; entortou uma perna sobre a outra, espetou o queixo com o indicador, depois armou um biquinho que condensou o seu buço, fazendo com que ele parecesse uma mocinha de bigodes negros. O primo gostou do insulto porque era veado mesmo, conforme Ali ficou sabendo tempos depois. Ali tinha então cinco anos e não sabia muito bem o que significava ser veado. Tampouco sabia o que fazia de errado uma puta, fora fumar no poste. Mas já tinha a certeza de que, no mundo inteiro, pior que veado, maconheiro, dedo-duro e tudo o mais, a pior situação na vida é ser um filho-da-puta.
Fica a curiosidade para assistir ao filme homónimo, que proporcionou a estreia da Cléo Pires como actriz, e logo num enredo pesadíssimo destes, com violação pelo meio e tudo o mais. Até é de esperar que, dada a narrativa, a coisa funcione melhor em ecrã. Fica pra pensar.